Editorial publicado no Blog do Editor e na página 2 de Zero Hora exaltou o auxílio dos colaboradores e gerou polêmica.
Tarde do dia 19 de novembro de 2009. Ventos, chuva e destruição formaram o cenário de Porto Alegre, a capital gaúcha. A mesma situação se estabeleceu nas demais cidades do Estado do Rio Grande do Sul. A primavera marcada por tempestades foi testemunhada e registrada pela mídia jornalística e por amadores. Uma série de relatos e de imagens enfatizando os estragos provocados pelas condições climáticas foi publicada nas redes digitais.
Blogs, redes sociais como o You Tube e o microblog Twitter serviram como espaços para a manifestação dos leitores/interagentes. As seções colaborativas, disponíveis nos jornais digitais de referência, também complementaram o quadro de informações sobre os temporais. O público descreveu os fatos ocorridos naquela data, ao mesmo tempo em que os jornalistas constituíram narrativas sobre os mesmos acontecimentos. Distintos pontos de vista encontraram lugar para a publicação na Web.
Nos veículos jornalísticos vinculados ao Grupo RBS, entre eles o jornal digital Zero Hora.com, os conteúdos profissionais e colaborativos acabaram se complementando. O processo formou relatos coletivos sobre a realidade, mediante a apropriação que o meio jornalístico fez dos materiais encaminhados por amadores. A partir de convites postados pela equipe do jornal digital, textos, fotografias e vídeos captados e enviados por colaboradores foram aproveitados na cobertura geral realizada pelo meio.
O fato foi destacado como positivo na sessão Cartas do Editor de Zero Hora, disponibilizada no meio impresso e no Blog do Editor, no dia 21 de novembro de 2009. O artigo “Leitores também iluminam a cena”, escrito pelo diretor de redação do jornal, Ricardo Stefanelli, salientou a dinâmica de trocas que foi estabelecida com o público na ocasião das enxurradas. O fato foi descrito da seguinte forma:
“Acostumados a lidar com o público, que cada vez mais ajuda na produção do conteúdo, os veículos da RBS viveram uma tarde diferente na quinta-feira, quando o Rio Grande anoiteceu às 12h50min. O coordenador de Jornalismo da Rádio Gaúcha, Cláudio Moretto, se preparou para mais uma cobertura de temporal em sua rotina, acionando como de hábito as equipes de reportagem. Não seria bem assim. Aos poucos, percebeu que a emissora ganhava uma ajuda externa mais encorpada do que de costume. O canal de voz com os ouvintes teve de ser ampliado em mais três ramais, tão logo foi aberto ao público. Os relatos chegavam com a mesma intensidade dos ventos. Por telefone, torpedos, e-mails e Twitter. A intensidade exigia uma providência (…) Era preciso organizar e processar tantas informações. Enquanto repórteres e produtores telefonavam para polícias, bombeiros, hospitais e prefeituras, o público mostrava que, desde os locais mais atingidos, podia fornecer relatos mais fiéis”. (STEFANELLI, 2009, http://wp.clicrbs.com.br/editor/2009/11/21/leitores-tambem-iluminam-a-cena/?topo=13,1,1)
O editorial salientou a relevância das colaborações para a complementação do trabalho realizado pelas equipes de jornalismo dos meios ligados ao Grupo RBS. Destacou, entre outros fatores, a importância dos conteúdos amadores para a abrangência e a atualidade da cobertura daquele evento. Nas palavras de Stefanelli, “só o público podia estar naqueles locais, naqueles momentos – e quem compreender e interpretar isso poderá oferecer um jornalismo cada vez mais amplo”.
O tom otimista do texto gerou polêmica entre os leitores. A partir de comentários feitos por interagentes no Blog do Editor, criou-se uma discussão que mostrou, de certa forma, a indignação do público com a abordagem escolhida por Stefanelli para ilustrar a questão dos temporais no Estado. A insatisfação pode ser observada no comentário a seguir:
“QUE ALEGRIA!!!! UMA TRAGÉDIA!!!! É de espantar… fiquei pasmo… abri a segunda página de ZH e lá vi… uma tragédia no estado … nunca vista antes… 3 fotos… quanta alegria… pessoas morrendo… É de assustar … e a nossa “querida zero hora” publica fotos de leitores que ajudaram na reportagem… felizes… OHHH.. QUANTA ALEGRIA….”
O ponto de vista do interagente foi apoiado por alguns leitores e foi criticado por outros, num total de nove comentários publicados entre os dias 21 e 23 de novembro. A observação abriu um debate que evidenciou mais que o descontentamento de alguns leitores sobre a perspectiva do editorial publicado em Zero Hora.
Ficou evidente a expectativa do público com relação à postura assumida pelo meio sobre um fato que teve consequências negativas para os gaúchos. O contrato de comunicação estabelecido com os leitores pode ter sido abalado. O editorial deixou de privilegiar questões pertinentes às necessidades do público prejudicado pelas chuvas para dar ênfase à realidade do próprio meio jornalístico, num discurso auto-referencial. Diante dos dados relatados, questiono: a ação de Zero Hora foi equivocada?
Pode ser que o enfoque do editorial tenha sido inadequado, visto a dimensão dos prejuízos provocados pelas chuvas no Rio Grande do Sul. Apesar disso, é interessante perceber que foi exaltada a força da mobilização da coletividade nas redes digitais para que o meio realize coberturas cada vez mais completas. Fica cada vez mais evidente a tendência à reportagem compartilhada, que autores como Briggs (2007) chamam de Crowdsourcing, e mesmo ao que Anderson (2006) chama de movimento Pro-Am, a parceria entre profissionais e amadores.
O editorial publicado em Zero Hora impresso e no Blog do Editor, mais que criar polêmica entre os leitores, demonstra o reconhecimento de uma mídia jornalística de referência sobre a relevância dos conteúdos amadores para a sua publicação. É uma marca de que o auxílio do público está gerando bons resultados, que as manifestações amadoras não se perdem na imensa variedade de conteúdos disponíveis nas redes digitais. Os veículos jornalísticos estão aproveitando cada vez mais estes conteúdos, deixando-se influenciar e alterando as suas lógicas internas em busca da integração. Sinal de amadurecimento em tempos de convergência…